quarta-feira, 20 de julho de 2011

Pagã - Conto Por Simone Marques



A chuva ainda cai do lado de fora... E eu só consigo imaginar minha horta... Meu pé de manjericão deve estar florido e perfumado, ele adora chuva! Mesmo aqui eu gosto de sentir o perfume da terra molhada e se pudesse iria dançar sob essa chuva de água doce...
Ainda não entendo... ainda não sei o que fiz para que me trancafiassem aqui. Busco na minha mente algo de ruim que tenha feito, mas não consigo me lembrar de nada!
Me lembro das manhãs que passava cuidando das minhas plantas, colhendo algumas folhas para os chás.
Me lembro de gostar de me arrumar... só não gostava mesmo do aperto causado pelo espartilho, mas sempre foi um sacrifício bem recompensado, pois meu corpo ficava muito bonito e meu colo chamava a atenção dos homens...
Homens... sei que tive alguns, mas nunca fiz nada de errado... apenas os deixava felizes, coisa que não conseguiam com suas mulheres, muitas vezes...
Mulheres... estranhas essas minhas companheiras de gênero... Se desconfiavam que seus maridos estavam melhores na cama, era por que elas haviam conseguido a proeza... Se os homens demonstrassem desinteresse, falta de apetite na cama... ou me culpavam ou me procuravam... Claro que não para que lhes desse dicas de como realmente agradá-los, mas para pedir alguma água de cheiro, que eu produzia com minhas plantas perfumadas, ou para que eu indicasse alguma infusão que as deixassem mais fogosas ou fizessem seus maridos as olharem com desejo e até com amor... Fui muito procurada por elas... casadas.
As jovens solteiras sempre estavam atrás de mim querendo que lhes ajudasse a conquistar um rapaz, a se livrar de uma concorrente... e até a se livrar de um filho indesejado... Algumas queriam que eu preparasse algum chá que as fizesse ficar virgens novamente!
Eu ajudei a eles todos! E sempre fiz de bom coração e na maioria das vezes, não recebi nada em troca... às vezes ganhava uma galinha... um porquinho... mas isso era raro. Mas já ficava feliz de me deixarem em casa, cuidando das minhas plantas, andando descalça pela terra, falando com minhas árvores companheiras...
O mais interessante é que sempre gostei de crianças... mas elas dificilmente se aproximavam de mim... Eu sei que algumas faziam apostas entre si e então batiam na minha porta e saíam correndo... Eu então as ouvia ao longe dando gritos e rindo... deveria ser uma brincadeira bastante divertida... Algumas mães não deixavam que seus filhos olhassem para mim, embora eu tenha ajudado, algumas delas, a conseguirem engravidar... mas, tudo bem, eu sempre fiz de bom coração...
Agora... o pior de todos era o pastor...
Assim que ele chegou à aldeia se fez conhecer por todo mundo... e eu não me interessei. Rapidamente ele construiu aquele prédio que se destacava das construções da minha aldeia... Ele falava alto, gesticulava bastante e empurrava todos para dentro daquele prédio que ele chamava de igreja...
Eu sempre soube o que era igreja, mas nunca me interessei por ela... Diziam que lá encontravam o Invisível, mas sempre presente... Então eu preferi ficar com aquilo que eu tinha... a natureza... eu falava com ela e ela me respondia através das plantas, da chuva, do vento e do sol...
Quando me trouxeram para cá me disseram que era a vontade do Invisível... e eu tentei me comunicar com ele para saber o motivo... mas não obtive resposta. Meu carcereiro me ouviu tentando conversar com o Invisível e saiu correndo, voltando com o pastor que estava acompanhado da mulher...
Eu fiquei com pena dela, juro! Uma mulher nova com o corpo todo coberto, até os cabelos estavam cobertos por uma touca horrível! Eu até cheguei a pensar: Será que estou aqui porque não uso touca? Será que é porque uso meus cabelos soltos? E meu colo, que sempre achei lindo, está aparente? Cheguei até a, instintivamente, esconder meu colo com meu xale... talvez tentando ser solidária com aquela mulher...
O pastor me olhava como se estivesse diante de um estábulo ou cercado com animais... ele parecia querer me farejar...e segurava um livro preto nas mãos.
Claro que eu já não tinha o perfume que gosto de usar depois de dias trancafiada... e reconheço que não havia um cheiro bom em mim... Mas eu me lavava...
- Com quem conversava? – o pastor me perguntou com aquele olhar superior e eu custei a entender a pergunta. – A quem pedia ajuda? – ele insistiu.
Eu me levantei e fui até perto de onde ele estava com a mulher... e eles deram um passo para trás como que se tivessem levado um choque com a minha aproximação...
- Queria saber porque estou aqui... – falei olhando-o nos olhos e consegui decifrar muito daquele homem...
Percebi que ele tinha outras mulheres e a mulher sabia... pensei que era por isso que se escondia à sombra dele...
- Você é uma bruxa? – ele me perguntou com os olhos que percebi passarem pelo meu colo. – Falava com o demônio?
Bruxa, demônio... eu nunca tinha ouvido isso antes e olhei sem compreender.
- Você faz bruxaria na sua casa? Faz feitiços para atrapalhar a vida de pessoas honestas? – ele me interrogava.
- Faço chás, infusões e perfumes... – eu respondi com toda a honestidade, pois era aquilo que eu fazia...
- E conversava com o demônio pedindo para que lhe tirasse daqui? – ele sorriu ironicamente.
- Falava com o Invisível, mas ele não respondeu, então não era uma conversa... – respondi com sinceridade.
- Invisível?! – ele arregalou os olhos. – Quem te ajuda, bruxa?
- Não é o invisível que você levou lá para a igreja? – eu ainda me permiti tentar explicar.
- Deus! Você chama Deus de invisível? – o rosto dele ficou vermelho. – Não acredita Nele? – a essa altura a mulher dele já me olhava como seu eu estivesse com lepra.
- Chame ele aqui... que eu converso! Eu nem sei como ele é? Com quem se parece? Não o vi na aldeia! – e eu realmente não o tinha visto ainda, por isso o chamava de Invisível.
- Herege! – o pastor falou cuspindo sobre mim... brandindo aquele livro preto diante de meu rosto e saiu pisando duro seguido pela mulher que talvez fosse muda...
Mas ele voltou mais tarde... sozinho e pediu ao carcereiro que o deixasse ali sozinho comigo que iria tentar me fazer confessar e me converter...
- Bruxa! – ele me acusou antes de me agarrar dentro da cela e enfiando o rosto no meu colo que ele fitara poucas horas antes.
Eu percebi que ele era um homem como qualquer outro daquela vila e até senti pena, pois a mulher dele, com certeza tinha algum problema... Mas então, ele me bateu e me xingou... e me usou...
Depois, como se tivesse cumprido uma missão especial, arrumou sua roupa preta no corpo e ajeitou os cabelos pretos escorridos, pegou o livro preto que deixara no chão e me encarou enquanto meu rosto sangrava e eu estava largada no chão.
- Não há salvação para você... Sua alma está perdida...
Dito isso, ele se virou e saiu batendo a porta da minha cela. Eu fiquei ali sem entender exatamente o que havia acontecido... E, pouco depois, o carcereiro apareceu e entrou na minha cela... Ele não me explicou nada... apenas me jogou no chão e repetiu as lições do pastor, enquanto me chamava de bruxa...
Quando ele se satisfez, trancou a porta da cela e disse:
- Amanhã vai para a fogueira... peça ajuda ao demônio seu amigo! – ele riu.
Eu fiquei ali e chorei, eu não sabia quem era esse amigo que poderia me ajudar! Eu não tinha amigos na aldeia!
Agora eu vejo todo o povo da aldeia reunido em volta de um tronco de árvore cercado de lenha e palha... Minhas mãos estão amarradas diante do meu corpo, minha roupa que foi rasgada pelo pastor e pelo carcereiro me fazem parecer uma trouxa de roupas velhas. Meu cabelo que eu cuidava com tanto carinho, está todo despenteado, cheio de palha e lama do chão da minha cela.
Passo olhando para aquelas pessoas que tantas vezes ajudei e muitas me xingam e me chamam de bruxa... Algumas mulheres não agüentam meu olhar e viram os rostos, mas estão todos ali, toda a aldeia está ali...
Mas meu pensamento está nas minhas plantas, nas minhas árvores... quem cuidará delas? Quem conversará com elas para que floresçam? Quem adubará a terra? E é essa tristeza que me consome.
Sei que não adiantará gritar... isso só os deixaria mais animados...
Vou ser queimada porque me chamam de bruxa... e ainda não sei se por causa dos chás ou dos perfumes ou por causa de minha lascívia...
Meu carcereiro que sentiu o gosto do meu corpo, agora me puxa com violência e me leva para junto daquele tronco... ele me amarra e então eu sinto algo mágico!
A madeira da árvore recém cortada... ela está perfumada... assim como eu ela sabe que a morte é certa, mas está firme e me apóia, me reconforta e, então eu recosto nela minha cabeça em busca de consolá-la também... e naquele momento eu consigo sorrir. Sei que eu estarei com a natureza... poderei me juntar às plantas e à chuva... deixarei que o vento me sopre para onde desejar...
- Ela sorri! O demônio fala com ela! – eu ouço a voz do pastor que grita no meio do povo.
- Bruxa!! – é o eco das vozes em volta de mim.
Eu não mais os escuto, porque agora o vento veio acariciar meu rosto...
E finalmente eu sinto o sol... e ele nasce debaixo de meus pés e caminha sobre mim... ele é forte, poderoso e seu calor faz meu corpo arder... eu amo o sol...